Brasília (7/1/19) – Em uma terra rodeada por montanhas, o sol brilha e aquece centenas de pés de café, que logo darão frutos. Ao mesmo tempo em que acalora a plantação, ele queima e marca a pele de cerca de 20 mulheres que zelam por um mar de pequenas sementes vermelhas. Elas serão colhidas quando estiverem maduras; em seguida, selecionadas, lavadas, ressecadas, novamente escolhidas a dedo; e finalmente torradas até virarem o Póde Mulheres — um café encorpado e de personalidade forte, como a de Arlete, Eliane e Maria José (algumas das cafeicultoras responsáveis pelo produto, 100% produzido por mãos femininas).
Mães, filhas, irmãs e amigas uniram-se para criar uma bebida de qualidade, que oferece uma experiência completa para quem a degusta. Quando o aroma do Póde Mulheres exala, é difícil resistir. A bebida quente, apetitosa e cheia de amor combina com o olfato e o paladar de quem aprecia o “pretinho” mais popular do mundo. E esse sabor especial tem sua razão de ser.
“O diferencial do nosso produto está no cuidado que as mulheres têm na seleção e na torra de cada grãozinho cultivado”, explica Natércia Vencioneck, gerente administrativa da Cooperativa dos Cafeicultores do Sul do Espírito Santo (Cafesul), localizada no município de Muqui, há 178 km de Vitória. Ela foi uma das idealizadoras do projeto Póde Mulheres, criado para enaltecer o café produzido pelas pequenas produtoras rurais da região.
A bebida produzida pelo grupo de agricultoras da Cafesul é feita a partir do café conilon (veja quadro da página 35), espécie de origem africana de intensidade mais forte. A planta cresce no formato de uma árvore ou um arbusto, podendo chegar a até 10 metros de altura. Durante o plantio e a replantagem, as produtoras seguem técnicas tradicionais de manejo. O segredo para ter um café diferenciado, segundo elas, está no pós-colheita. “É preciso saber selecionar os melhores grãos e levar para a lavagem no mesmo dia”, explica Maria José da Silva, 54 anos, uma das cafeicultoras beneficiadas com o projeto.
Maria José sempre foi agricultora e viveu nos campos. Com a família, aprendeu a apreciar, cultivar e separar os grãos de conilon. O amor pelo cafezal transborda em seus olhos e chega a deixar a voz trêmula — principalmente quando ela se lembra das palavras do pai em dias de colheita. “Ele sempre nos ensinou a só guardar o que era bom. Dizia para procurarmos o melhor e a deixar de lado o que não acrescentava”, recorda. O conselho, segundo ela, vale para o café e para vida.
VALOR AGREGADO
Não são apenas o sabor e a qualidade do produto que atraem as pessoas para o Póde Mulheres. Hoje, o principal valor agregado do produto é o fato de ele incentivar e reconhecer a mão de obra feminina. “É animador participar de um projeto que incentiva tanto as mulheres. Essa ação me deixou mais feliz comigo mesma” esclarece Eliane de Almeida, 42 anos, dona do rosto que estampa a embalagem do Póde Mulheres.
Ao ver seus traços na embalagem pela primeira vez, a moça tímida e de mãos calejadas sorriu. “Me senti valorizada”, revela Eliane, que vive na zona rural de Muqui, e — estimulada pela Cafesul — passou a produzir queijos artesanais para combinar com a bebida quente. Quem também não poupa elogios ao Póde Mulheres é a pedagoga Helen Lima, 48 anos. Nascida e criada em uma lavoura de conilon, encantou-se cedo com a vida na roça e, mesmo depois de formada, fez questão de continuar a mexer com a terra. No sítio onde mora, em Muqui, ela e o esposo cultivam flores, pimentas e café. “Eu fazia mais por hobby, até que participei de uma capacitação da Cafesul e descobri que o meu sítio poderia ser uma empresa.”
Helen tornou-se cooperada da Cafesul em 2015. Desde então, aprendeu a administrar sua terra e a viabilizar o que é possível cultivar nela. Na próxima colheita, prevista para março de 2019, a expectativa é de aumentar a produção do café conilon. “Meu marido ficou desempregado e agora me ajuda no sítio. Hoje, é de lá que tiramos nossa renda”, diz, animada.
APRENDER PARA CRESCER
Além de gerar trabalho e renda para as cooperadas, o Póde Mulheres está transformando o árduo trabalho no campo em prazer para as envolvidas. “O contato com a terra me deixa calma, me alegra. As meninas do grupo são como uma família. Eu não sei o que estaria fazendo se não estivesse aqui, com elas, com esse trabalho”, declara Arlete Alves, 64 anos. Ela é uma das cooperadas premiadas pela Cafesul pela excelência de seu café.
Vale destacar: o nome Póde Mulheres é uma alusão não somente ao pó de café, mas ao poder do universo feminino. Afinal, com um pouco de incentivo, essas agricultoras têm conseguido transformar as vidas de suas famílias e de toda a comunidade. Justamente por isso, a Cafesul investe não apenas na comercialização do produto, mas na capacitação e na autoestima de suas cooperadas. “A cooperativa tem sido muito importante em nossas vidas”, reconhece Maria José. “Ela está sempre investindo na gente, e está sempre disposta a nos incentivar para o melhor”.
Na avaliação do presidente da Cafesul, Renato Theodoro, a capacitação é a base de tudo para cooperativa. “Nós fazemos cursos, seminários, palestras. Temos parcerias com o Sistema OCB e também com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae)”, comenta.
Outro fator decisivo para o crescimento da cooperativa foi a conquista da certificação Fairtrade (Comércio Justo), concedida por empresas de certificação especializadas. Para manter o selo, é preciso que a cooperativa cumpra com um cronograma social, ambiental e econômico junto aos cooperados, com programas de valorização do trabalho, das mulheres e da juventude, por exemplo.
A certificação é renovada a cada três meses. O selo Fairtrade (Comércio Justo) reconhece a produção ética e sustentável de produtos e serviços. Ele assegura aos consumidores que os produtos adquiridos respeitem normas sociais, econômicas e ambientais justas para todos os envolvidos na cadeia produtiva. Hoje, o selo Fairtrade gera benefícios para mais de 1,2 milhão de famílias de agricultores em 70 países em desenvolvimento.
“O selo de Comércio Justo é uma forma de agregar ainda mais valor ao nosso produto, e ajuda a melhorar não só a renda do produtor, mas a condição de vida dele no campo”, explica Theodoro.
Com concursos de qualidade internos sendo realizados periodicamente desde 2011, a Cafesul tem conseguido se destacar no mercado de café. O Póde Mulher, por exemplo, foi o produto vencedor de um concurso interno de qualidade, realizado em 2016. O projeto ganhou tanta força e deu tanto retorno para as mulheres envolvidas que terminou ganhando as ruas em 2018.
“Se eu pudesse fazer nosso café se multiplicar para suprir o Brasil inteiro, eu faria. Afinal, ele é cuidado com carinho e com muito amor. E o meu prazer seria esse: que um café produzido apenas por mulheres chegasse a todas as mesas para que o Brasil conhecesse o poder que vem das nossas mãos”, diz a sonhadora Maria José, enquanto passeia pelos cafezais de Muqui.
VOCÊ SABIA?
Apesar de seu sabor marcante, o café conilon não é o mais consumido do Brasil. Aqui, os grãos do tipo arábica — mais doces e aromatizados — costumam ser mais apreciados. Entenda a diferente entre os grãos:
CAFÉ CONILON
Origem: Congo e Guiné
Formato: Grão arredondado
Sabor: Marcante e amargo
Teor de açúcar: Entre 3 a 7%.
Teor de Cafeína: 2,2%
CAFÉ ARÁBICA
Origem: Etiópia
Formato: Grão oval
Sabor: Adocicado com leve acidez
Teor de açúcar: Entre 6 e 9%
Teor de Cafeína: 1,2%